Este é um relato muito importante para nos ajudar a perceber como tudo que procuramos de bom para o nosso parto e nosso bebê pode acabar se transformando em uma armadilha se os profissionais que nos atendem pararam de estudar há décadas. E isso infelizmente no nosso país é a regra e não a exceção!
Se Valéria tivesse sido bem atendida, como era seu direito ao procurar um hospital, o resultado provavelmente teria sido outro. Agora é fácil demais pegar só o final da história e dizer que se ela não tivesse insistido em ter um parto normal... de que insistência estão falando? Da insistência em não querer a comodidade de um nascimento com hora marcada, onde todos estão avisados menos o bebê? Porque essa foi realmente a única vontade dela, de que seu bebê viesse ao mundo na hora em que se sentisse preparado para isso. E aí pegar todos os erros cometidos pela equipe e jogar tudo num pacote só de que isso não teria acontecido se o nascimento tivesse sido com hora marcada é extremamente injusto e principalmente é extremamente desinformado! É o tipo de coisa que se escuta muito quando moramos no país onde mais se faz cesáreas desnecessárias.
Trabalho muito e rezo muito para que histórias como essa, de violência obstétrica e de atendimento desatualizado aconteçam cada vez menos.
Leiam o relato e vejam como essa história tinha tudo para ter um final completamente diferente.
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Tudo começou lá, na minha
lua-de-mel. Quem diria que eu iria engravidar no primeiro dia da lua-de-mel.
Meu nome é Valéria, tinha acabado de me casar e estava com 24 anos. Descobrir a
gravidez não foi difícil. A minha menstruação atrasou e eu tive certeza que
estava grávida. Nunca tinha atrasado antes, e eu tive certeza. Fiz um exame de
farmácia, e lá estavam as duas tirinhas azuis. Fiz um ultrassom, transvaginal,
e o bebê estava com 3mm, tão pequeno, meu Deus! Ele estava lá, e me fez feliz!
Foi uma gravidez muito tranquila,
não enjoei nenhuma vez, não passava mal, não sentia dores, estava feliz. Eu
havia decidido pelo parto normal desde o início. Eu sabia que era o melhor para
mim e principalmente para o bebê. Fiz todos os exames do pré-natal normal,
tomei todos os remédios que o médico recomendou, vitaminas e tal, realmente
estava tudo bem. Eu não sabia nada sobre parto humanizado, nem sabia que
existia, mas sabia que eu queria um parto normal.
Meu bebê cresceu, e com cinco meses
de gravidez, eu descobri que era um menino. E aí eu e meu esposo começamos a
decidir o nome dele. Tantos nomes depois, tantas crises de ciúmes depois (ah!
como eu fiquei com ciúmes do meu marido nessa época), nós decidimos que o nome
dele seria Calebe. E a partir de então era “o meu neto Calebe”, “o meu primo
Calebe” e “quando é que o Calebe chega?”, e ficamos assim por vários meses
nessa expectativa sem fim.
Calebe me trouxe várias alegrias no
tempo em que esteve em meu ventre. Fiz comprinhas de várias roupinhas e
coisinhas para ele, e cada vez que ele me chutava só faltava eu pular de tanta
alegria. Meu esposo já parecia um papai coruja e meus colegas de trabalho
tomavam conta de mim, da altura do salto que eu usava, das coisas que eu comia,
do estresse que eu passava no trabalho, estava sempre rodeada de amigos e
parentes que cuidavam de mim o tempo todo.
Eu morava no interior do Amazonas,
mas sou natural de Recife-PE. Meus pais moram em Recife até hoje, e eles
queriam muito que eu fosse ter o meu bebê lá. Mas eu também já tinha decidido
que o meu parto normal seria na cidade que eu estava, pois a nossa casa já
estava preparada para o bebê, toda pintada, e eu já tinha colocado o bercinho e
as roupinhas do bebê na cômoda, tudo dentro do quarto, e grudei adesivos de
bichinhos por toda a parede do quarto, pois eu sonhava em ensinar os nomes dos
bichinhos para ele quando ele estivesse grandinho. E assim tudo estava
decidido.
O parto estava previsto para o dia
23 de outubro de 2011, um domingo. O médico queria marcar a cesárea, mas eu
disse que queria normal, e assim estava feito. Quando foi na quinta-feira, dia
20 de outubro de 2011, de manhã cedinho, deu vontade de ir ao banheiro, e
quando eu me limpei, veio com o tampão, grosso, amarelado, e com um pouquinho
de sangue. Meu marido chamou a técnica em enfermagem que trabalhava com ele no
posto de saúde, pois ela também era parteira, e quando foi umas nove horas da
manhã, ela fez um exame de toque e eu estava com dois centímetros de dilatação.
Mais dois exames de toque, e às três horas da tarde eu já estava com seis
centímetros de dilatação, e decidi ir para a clínica com as minhas coisas e a
do bebê.
Foi aí que tudo começou, e eu não me
lembro bem a ordem cronológica dos fatos. Eu lembro que eu fiquei andando pela
clínica até chegar aos oito ou nove de dilatação, e as contrações ficavam cada
vez mais fortes e menos espaçadas, mas eu lembro que cada minuto eu ficava mais
feliz porque ia ver o rostinho do meu Calebe. Eu fiz diversos agachamentos
também durante a caminhada, mas quando as contrações estavam bem fortes e uma
atrás da outra, a técnica de enfermagem me mandou deitar na cama de parto e ela
mesma estourou a bolsa. Daí as contrações ficaram fortíssimas, e eu comecei a
fazer força. Encostava o queixo no peito, prendia a respiração e a cada
contração eu fazia força. Meu bebê coroou uma vez, e voltou. Eu fiz mais força,
ouvi a minha amiga que estava comigo dizer que ele tinha coroado e estava perto
de nascer, mas na outra contração ele coroou de novo e voltou. Aí aconteceu uma
coisa que me espantou. Alguém entrou na sala e entregou um bebê que tinha
acabado de nascer em uma cesárea marcada para que a técnica que cuidava do meu
parto cuidasse dele ao mesmo tempo. Aquilo me deixou com muita raiva, eu achava
que o choro daquele bebê ia assustar o meu, sei lá. Senti uma vontade tão
grande de levantar, eu queria ficar de pé, e sentia vontade de me agachar e
fazer força agachada, pois não conseguia fazer a força que diziam, a força de
“ir no banheiro quando tá duro”, deitada. Era uma posição extremamente
desconfortável. Quando tentei levantar, a técnica não deixou, disse que o bebê
já tinha engolido muita água e que se eu levantasse ele ia engolir mais. Então
eu tentei deitada mais uma vez, e ele coroou e voltou de novo. Nesse ponto eu
parei de sentir contrações, não sentia mais nenhuma contração, e comecei a
sentir sono, um sono tão grande, não sabia o que estava acontecendo. Aplicaram
em mim o soro para aumentar as contrações, mas mesmo com o soro, as contrações
não voltaram e eu sentia sono. Quando o médico apareceu, depois de ter
terminado aquela cesárea do bebê, a única vez que ele apareceu, a técnica disse
que dava para eu ter normal, mas que eu estava “fazendo a força errada”. Então
várias pessoas começaram a me “amassar”, a técnica, o médico, até o meu marido
e a minha amiga, mas o bebê não desceu mais.
Eu não sentia mais contrações, a
técnica dizia que o bebê estava em sofrimento, e então eu olhei para o meu
marido e disse a ele que seria a hora de pedir uma cesárea. O médico preparou o
centro cirúrgico e me operou. A operação não durou nem 30 minutos. Meu bebê não
chorou logo, e eu fiquei preocupada. Ouvi o médico gritando, chamando o nome da
técnica em enfermagem que tinha tentado fazer o meu parto. Ela chegou e eu
pedia para ver o Calebe, mas ninguém me mostrava ele. Demorou muito para eu
vê-lo, ele estava roxinho, mas eu não conseguia ouvir o seu choro. Minha
garganta começou a coçar e eu não conseguia falar. Depois de ouvir a palavra
“adrenalina” uma vez, minha cabeça começou a doer tanto que parecia que ia
explodir. Eu ouvia o aparelho automático de medir a pressão dizer “vinte por
dezesseis” e eu perguntava loucamente “isso é a minha pressão?”. A cabeça parou
de doer, a garganta parou de coçar, e a pressão voltou ao normal. Eu tinha tido
uma crise alérgica a alguma coisa e por isso a dose de adrenalina. Lembro-me de
quando cheguei ao quarto e depois apaguei.
Lembro-me do bebê chorando agoniado
durante a noite e lembro-me de alguém dizer de madrugada que eu não tinha bico
no peito para dar de mamar, e mandaram meu esposo comprar aquele leite de lata
para recém-nascidos. De manhã, na hora que fui tomar banho, meu bebê estava
tomando uma mamadeira que fizeram para ele e de repente ele ficou roxinho, sem
ar. Levaram ele para o médico, o bebê foi aspirado, meu marido disse que o bebê
foi aspirado junto com outro bebê ao mesmo tempo, com o mesmo tubo. Levaram o
meu bebê para um quarto isolado e colocaram-no no oxigênio. Eu também fui para
este quarto e passamos lá toda a sexta-feira, esperando o Calebe melhorar. Como
o meu sangue é negativo e o bebê nasceu com sangue positivo, o médico mandou a
vacina anti-RH para aplicarem em mim, e meio sonolenta e cansada eu dizia que a
vacina era para mim, até que alguém me acordou e disse que a vacina que o bebê
tinha que tomar já tinha sido aplicada. Que vacina? Aplicaram a vacina que era
para mim no meu bebê! Aquilo me deixou revoltada. O médico mandou outra vacina
para mim, mas eu fiquei preocupada com as consequências de aplicarem uma vacina
errada em um bebê recém-nascido tão fragilizado como o Calebe.
O choro dele acalmou quando já eram
umas sete horas da noite de sexta-feira. Ele dormiu um sono tão tranquilo, que
eu e meu marido respiramos aliviados, achando que ele estava melhor. Aí quando
foi umas dez horas da noite ele teve febre e não melhorou mais. Aplicaram
dipirona no bebê, depois disseram que era errado aplicar dipirona, e fizeram
compressa de álcool para ver se baixava a febre. Ele ficou muito mal durante a
manhã de sábado. Como não tinha UTI neonatal na cidade que eu estava, eu decidi
que era a hora de fazer alguma coisa. Solicitei o serviço aeromédico do meu
plano de saúde, e o avião saiu de Manaus para vir buscar o Calebe. O médico que
ia levá-lo chegou, tentaram encuba-lo na UTI aérea, foi necessário reanimar o
meu bebê por três vezes, mas ele não resistiu. Esse é um relato resumido do que
aconteceu com o meu bebê até o dia e hora que ele morreu, pois várias outras
coisas aconteceram, maus tratos, pessoas descuidadas com o meu bebê que o
pegavam de qualquer jeito.
E hoje já faz mais de um ano e seis
meses que o meu bebê Calebe se foi, foi embora para os braços de Deus. Eu
imagino como lá no céu ele deve estar bem cuidado, sem dor, sem angústia, sem
sofrimento. Eu imagino que os braços de Deus devem ser aconchegantes e
fofinhos, e ele pode dormir lá, ou talvez já tenha crescido e esteja correndo
pelos campos floridos do céu. Mesmo assim, o dia das mães está chegando aí, e
este já vai ser o segundo dia das mães que eu passo sem ele, sem o meu bebê
Calebe. Minha cabeça se enche de perguntas, está sempre cheia de “se”: E se eu
tivesse ido ter o bebê em Recife? E se eu tivesse insistido que queria levantar
e agachar? E se eu tivesse feito logo a cesárea? E se eu tivesse pedido o avião
no dia anterior? São perguntas que invadem a minha cabeça e me machucam por
dentro, causando em mim uma verdadeira sensação de impotência, talvez até de
incompetência, por não ter conseguido “parir” meu filho. Ouvi algumas pessoas
dizerem que a culpa foi minha, porque eu fiz a força errada. Ouvi alguém dizer
que foi melhor o que aconteceu, porque aí eu ia cuidar só da minha recuperação.
Foi minha mesmo a culpa? Na verdade, existem culpados nessa história? É certo
que achar um culpado ou não, responder a todos os “se” da minha cabeça ou não,
nada disso vai trazer ele de volta, e nada nem ninguém vai amenizar essa dor.
Talvez um outro filho, quem sabe. Quando? Não sei. Só Deus saberá dizer quando
estarei preparada novamente.
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Valéria, na minha opinião todas as respostas às suas perguntas levam sim a possível desfecho diferente. Se a equipe tivesse seguido o seu instinto totalmente acertado de levantar-se e colocar-se em uma posição verticalizada, o bebê teria descido e nascido com mais facilidade. Se a enfermeira não estivesse ocupada com outro bebê ao mesmo tempo que com o seu parto, se não tivessem empurrado tanto a sua barriga, a sua pressão provavelmente não teria subido tanto e vc poderia pegar seu filho no colo logo que ele nasceu.
Quanto a fazer a força errada, isso é tão comum de se escutar e ao mesmo tempo tão absurdo... você estava na posição que a Organização Mundial de Saúde recomenda que não seja adotada! Eles dizem pra dar liberdade de posição e NÃO incentivar posição supina ou de litotomia, pois essa posição diminui a oxigenação da mãe e do bebê. O canal de parto vira uma rampa de subida, e é por isso que o bebê volta no canal de parto, ele escorrega de volta! Aí fica fácil demais da equipe fazer tudo errado e depois colocar a culpa na mãe...
Quanto a vacina que era para você ter sido aplicada no bebê... infelizmente o que temos de dados sobre isso nos mostra que a tão falada segurança do parto hospitalar muitas e muitas vezes leva a isso. O parto domiciliar é tão ou mais seguro que o parto hospitalar, e em grande parte porque erros como esse são praticamente impossíveis de acontecer quando o cuidado é um para um, ou seja uma equipe para cuidar de um parto. Ouso dizer que se o seu parto tivesse sido em casa nada disso teria acontecido. Não temos certeza de que outros problemas não teriam se apresentado, isso é verdade. Mas pela história que vc conta, TODOS os problemas que vocês tiveram foram CAUSADOS pela atenção desatualizada. Infelizmente médicos que se formam e param de estudar é o que mais se vê nesse país. Pelo visto eles nunca ouviram falar que quase metade do que aprendem na faculdade já está desatualizado no momento em que pegam o diploma na mão...
Enfim, agradeço muito por você compartilhar a sua história. Com certeza isso vai ajudar muitas mulheres e muitas famílias, e assim o seu anjo Calebe terá vindo com uma missão de ajudar e alertar outras mães e outros casais a buscarem as melhores alternativas de parto que estiverem ao alcance.
Você, assim como eu, não está mais em um lugar onde a Medicina atualizada ainda não chegou. Hoje nós duas moramos perto de uma maternidade que atende segundo as melhores evidências cientificas atualizadas. Isso com certeza não impede que fatalidades aconteçam, mas ser atendida por um médico que não parou de estudar provavelmente teria feito toda a diferença.
Um grande abraço e conte sempre comigo!
Vânia.