Quando minha amiga Teka gestou nossa querida Ana
Sofia, eu acompanhei de perto, estávamos no meio do mestrado. Quando a Ana ia
nascer, eu tinha acabado de vir do meu trabalho de campo no Acre - onde fui
conhecer a aldeia Ashaninka do Rio Amônia – e eu tive um sonho: eu ia passar
pelo “ritual do umbigo”. A imagem que tenho do sonho ainda é uma imagem em
negativo analógico, de um ventre que de dentro sai um cordão umbilical ligado a
um bebê, braços femininos o seguram, como se olhassem de frente, mãe e bebê. Esse
sonho me dava a certeza de que um dia eu passaria pelo tal “ritual do umbigo”,
nome sugestionado provavelmente pela minha formação em Antropologia. Defendi meu mestrado dia 31 de
agosto de 2011, esperei o dia seguinte para ir ao posto de saúde e marcar um
ginecologista. Na hora me fizeram o teste de gravidez e curiosamente deu
positivo. Era o fim de uma etapa e o começo de outra. Outra que modificaria
nossas vidas para sempre.
A partir de então, já com dois meses de gestação,
comecei a viver em Calico Skies - Céus de algodão[1]. E até uma amiga que nunca
soube disso um dia me chamou de “campos de algodão”, pela calma que meu ser lhe
transmitia. Achei engraçado.
Bom, o tempo foi passando e de ultrassom em ultrassom acompanhávamos o crescimento do pequeno ser, no forninho ajeitado da
minha barriga. O Ricardo levou um tempo enorme até a “ficha cair”, na
verdade parece que até hoje ainda não caiu totalmente. Ele é apaixonado pelo
bebê, que nasceu com a cara do papai e o jeitinho da mamãe. Também se tornou,
para a amiga Simone, o “algodãozinho”, pelo seu jeito calmo e bonzinho.
A partir do quarto mês, descobri um grupo de apoio
ao parto natural em São Carlos e comecei a frequentar as reuniões quinzenais,
nas quais aprendi coisas que nunca havia imaginado. O grupo trazia depoimentos
das mães que haviam parido pelo parto humanizado e informações acerca da
natureza do ato de parir. Antes disso eu nunca, na minha vida toda, jamais
tinha ouvido falar em “plano de parto”. E essa dúvida tenho sempre comigo: porque
será que ninguém nunca fala nada do tal plano de parto? Por fim, as reuniões me
trouxeram explicações e métodos para que o nosso parto fosse o mais livre
possível de intervenções, sem anestesias ou cortes desnecessários, sem
hormônios além daqueles que meu corpo produzisse e com o máximo possível de
autonomia, podendo usar o chuveiro e me alimentar.
Havíamos completado 41 semanas e fui ao posto de
saúde para dizer ao obstetra que havia tido um sinalzinho no dia anterior, um
pouquinho de sangue, mas nada preocupante. Ele fez um exame de toque e
constatou que estava com dois dedos de dilatação. Disse que eu estava entrando
em trabalho de parto, mas que se nada mais evoluísse até o completar dessa
semana, marcaríamos uma cesárea. Passei um dia tranqüilo, sentada na bola de
pilates que havia comprado e usava-a rebolando para que ajudasse na dilatação.
No dia seguinte era quinta feira e as 8h da manhã mais um sinal de sangue me
dizia que estava evoluindo.
Eu havia combinado com uma amiga para me ajudar a
contar as contrações e liguei pra ela pra dizer que achava que estava
começando. Ela havia sido minha aluna na bolsa de monitoria que realizei no
mestrado e quando comecei a participar do grupo de gestantes ela estava lá,
pesquisando o parto humanizado para seu TCC. Seria uma ajuda mútua, pois eu
sabia que deveria esperar o máximo possível em casa as contrações chegarem,
para apenas no momento certo ir para a maternidade. Meu sonho era parir na
banheira e em casa, mas o momento financeiro não me permitia tal regalia. A ideia então era ficar o máximo possível no chuveiro em casa e quando as
contrações estivessem a cada 3 minutos, partiríamos para a maternidade. Em
contrapartida, a minha aluna que se tornou minha doula, faria do meu parto seu
trabalho de campo e poderia usar essa experiência para a sua etnografia.
Quando foi 11hs da manha, comecei a sentir as
contrações. Liguei para Natália que apareceu em meia hora. Ricardo tinha levado
sua mãe para uma consulta. Quando Natália chegou, me ajudou a preparar um almoço.
Eu estava com muita fome e quis almoçar arroz, feijão e bife. Ela me ajudou a
preparar, pois eu já estava sentindo as primeiras dores, que no começo tinham o
intervalo de 5 minutos, aproximadamente. Preparei um prato do qual eu não
conseguia desfrutar. Eu começava a comer vinha uma contração. Quando ela
passava, a gente esquentava o prato no microondas, mas quando eu tentava comer
novamente, contração. Assim foi por umas quatro ou cinco vezes, até que desisti
do prato. No momento das contrações, eu abraçava a bola e me entregava.
Na
verdade, no começo eu fiquei bastante preocupada com a Natália. Eu me sentia
incomodando, com um pouco de vergonha. Ela, por sua vez, me tranqüilizava,
dizendo “relaxa Dri”, tentando fazer-me sentir amparada. Ela me dava água, mas eu não tinha comido
quase nada.
O Ricardo apareceu por volta das 14h e não acreditou que eu ia
conseguir. Junto dele estava um casal amigo nosso, mas a presença dessas
pessoas foi um pouco incomodo para mim. Natália sugeriu que fossemos para o
chuveiro. Como eu não queria gastar muita água, decidi que iríamos para a
casinha da minha sogra, a Nice, que fica nos fundos da casa ao lado da nossa,
que estava desocupada e assim poderíamos gastar o quanto de água fosse
necessário.
Lá nos sentimos muito mais a vontade e eu comecei a me entregar
para o trabalho de parto. Eu sentia as dores e gemia, agora já sem receio ou
vergonha. Eu estava entrando no que as mulheres do grupo de apoio chamavam de
“partolândia”. Fiquei no chuveiro por bastante tempo. Eu sentia muito frio, mas
o quintal não recebia o sol necessário para eu me aquecer, então fiquei muito
no chuveiro. A Natália, preocupada com minha alimentação, foi em casa buscar
uma fruta. Trouxe uma banana e chocolate, mas assim que comi a banana, tive uma
contração tão forte que foi a única com tanta intensidade. A banana não parou
no estômago e então comi uns dois pedacinhos de chocolate. Mas principalmente,
bebi muita água. As contrações vinham e voltavam e era até engraçado, pois nos
intervalos eu podia conversar, rir, brincar com a situação, mas quando elas
vinham, era uma entrega total e um deixar a dor vir, uma dor que não é bem dor.
O tempo passou que não percebi. Sai do chuveiro algumas vezes e ia para a cama,
mas lá era pior. Eu ficava de cócoras em cima da cama e me apoiava nos
travesseiros. Lembro de ter olhado para fora e visto a tarde chegando. Achei
estranho, pois para mim o tempo tinha parado e, no entanto a noite já estava
chegando. Confesso que em alguns momentos, principalmente durante aquela única
contração fortíssima, senti um pouco de medo. Medo de estarmos sozinhas, medo
por a Natália não ser uma pessoa experiente. Ela foi excelente. E quando eu
ficava com medo e perguntava pra ela se não estava na hora de irmos, ela me
encorajava e dizia pra esperarmos mais um pouquinho, que ainda não tinha
chegado a hora. Ela me hidratava o tempo todo e percebendo que o chuveiro me
fazia bem me perguntava se eu não queria voltar pra lá. Num certo momento eu
lhe pedi que trouxesse de casa uma bacia, para que eu pudesse fazer um assento
na água quente. Foi bem agradável, mas quando a água esfriou, eu saí. Quando
foi por voltadas 18:30h ela me comunicou que as contrações estavam
estabilizando em 3 minutos. Quando teve a quarta contração no espaço de 3
minutos Natália me disse que havia chegado a hora de irmos. Até esse momento,
contamos por volta de 90 contrações.
Ela foi então avisar Ricardo de que estava
na hora, mas eu não fiquei esperando. Fui atrás dela e peguei as coisas que estavam
semi prontas em cima da cama. Tivemos ainda alguns contratempos, pois eu não
achava minha carteira, mas enfim lembrei-me de tê-la deixado no carro. Entramos
no carro, a Natália na frente com o Ricardo e eu atrás. Eu ia urrando;
impressionante como a dor parecia ter aumentado dentro do carro. Acho que
chegamos em cinco minutos. Demorou mais para eu ser atendida do que para chegar
à maternidade. Eu continuava me expressando como uma grávida parindo, gemendo,
só que agora as contrações eram mais intensas. Entrei na sala para o exame de
toque e constataram que estava com 7 cm de dilatação. Lembro da médica dizer
que “parecia que haveria um belo parto normal a ser feito”. A Natália entregou
a ela meu plano de parto, mas eu já estava na sala pré-parto. Ela me relatou depois
que a médica ficou meio indignada com a “história de plano de parto”. A minha
sorte foi que cheguei bem na hora de troca de plantão e não tive que passar
pelos crivos dela. Ela havia feito o parto de uma das meninas que esteve no
quarto comigo. Essa me disse que teve o períneo cortado e apesar de ter ficado
no chuveiro, sua barriga foi bastante empurrada. Assim que cheguei, me
trouxeram a meu pedido uma bola de pilates, mas ela estava tão murcha que não
dava pra usá-la. Mas alem de murcha, como o bebe já estava encaixando, a bola incomodava
como se atrapalhasse o bebe de sair. Deixei-a de lado e fui para o chuveiro
onde fiquei o tempo todo, até ele coroar.
Depois de dada a entrada, Ricardo e Natália puderam
entrar ao mesmo tempo comigo. Do que eu me lembro, ela ficava me dando água,
enquanto o Ricardo me fotografava no chuveiro. Ele estava explodindo de alegria
e com a máquina em punhos ficou andando pelas salas, chegando a fotografar
outra gestante em trabalho de parto. Natália me contou que o guarda pediu pelo
menos 3 vezes para que ela saísse, ela saía mas voltava. Ela também ficou
impedindo as enfermeiras de fazerem os exames de toque tradicionais, e só foi
feito um exame de cardiotocografia depois que a bolsa rompeu, por volta das
20h. As enfermeiras foram muito cuidadosas comigo, elas sabiam que eu queria um
parto humanizado, sem interferências, e ficavam pedindo para eu respirar para
mandar oxigênio para o bebê. No chuveiro
eu usei tanto uma cadeira para me apoiar, quanto um banquinho, próprio para o
parto de cócoras. Elas me perguntavam se eu sentia que ele estava encaixado,
mas eu não sentia. Eu cheguei a me tocar, mas não conseguia distinguir se tinha
a cabeça ali ou não.
Então quando deu 21h a enfermeira olhou enquanto eu estava
de cócoras e disse que já dava para ver a cabeça do bebê. Ela ficou meio
preocupada, do bebe nascer ali no chuveiro e pediu pra que eu segurasse
enquanto caminhávamos para a maca. Ela dizia pra eu respirar e segurar, para
ele não nascer no caminho. Nesse momento pediram para a Natália sair. As
enfermeiras foram chamar o médico obstetra que estava de plantão. Eu pedi para ele que queria o parto de cócoras, mas ele argumentou
que era melhor que eu deitasse na maca, na posição supino. Eu ainda tentei contra
argumentar mais ele foi enfático em dizer que era melhor para todos que fosse
na posição que ele queria, então naquele momento e sentindo que eu não podia
mais fazer nada eu deitei na maca. O Ricardo ficou filmando o parto e de certa
forma ele confiava no médico de tal forma que o que o médico dissesse que era
melhor, ele concordava.
Depois que deitei, continuei sentindo as contrações e o
medico me pedia para fazer força, mas não uma força explosiva. Tinha uma porção
de pessoas assistindo e não entendo porque a Natália, que tinha acompanhado
tudo, não pode ficar. Se fosse hoje eu ia exigir a sua presença. As pessoas que
estavam lá ficaram falando, aquelas conversas que não tem nada a ver com a
situação local. Eu só ouvia um “conversê” sem parar. Uma das enfermeiras que estava
junto chegou com uma glicerina líquida e borrifou na cabeça do bebê, que já
estava saindo. Depois que fui pra maca minhas lembranças são muito imagéticas,
pois o filme feito pelo Ricardo foi visto inúmeras vezes por mim.
Cinco minutos
após eu deitar Heitor nascia, as 21:09h do dia 03 de maio de 2012. Eu estava
muito cansada, mas ainda em meio a suspiros eu pedi ao médico que só cortasse o
cordão quando parasse de pulsar. Ele pediu para eu sentir o cordão e dizia que
não estava mais pulsando. Ricardo confirmou que não pulsava mais. Eu me esqueci
completamente de pedir para o pai cortar o cordão. Como ele estava filmando
esquecemos desse detalhe fortalecedor de nossos laços, mas só fui pensar nisso
muitos meses depois, quando estava vendo o vídeo pela milésima vez.
Eu peguei
Heitor no colo assim que nasceu e disse para ele que estava apertadinho lá
dentro. Logo em seguida as enfermeiras pediram para levar o bebe para os
procedimentos de sugar, medir apgar, pesar. Quando eu terminei o trabalho de
parto ainda faltava o nascer da placenta. Nossa, parecia mais dolorido que o
próprio parto. Nesse momento o médico insistiu que tinha que aplicar a
ocitocina, hormônio do amor, para acelerar a descida da placenta. Ricardo
perguntou para ele se era um procedimento e ele confirmando, deixamos que
aplicasse. Ele ficou por ali, conversando conosco. Eu perguntei ao médico que, se caso eu
quisesse a placenta, se ele se oporia. Ele riu e me perguntou para quê eu
queria a placenta, o que eu faria com ela. Então eu disse que iria enterrá-la
embaixo de um pé de pimenta, sei lá, que a placenta era minha e eu poderia
fazer o que quisesse com ela. Antes de responder que se eu quisesse mesmo eu
podia levar ele me perguntou qual era a minha formação e ficou falando com as
enfermeiras da ideia quase maluca desse povo.
Assim que Heitor nasceu deixaram
a Natália entrar novamente e agradeci por toda ajuda, que tinha sido
fundamental sua presença. Ela aproveitou a presença do médico e perguntou
alguma coisa para ele e ele foi falando, na verdade ele perguntou para ela se
ela queria a opinião dele acerca do tal parto humanizado. Só lembro dele dizer que
parto não tinha que ter musiquinha não, as outras coisas não me lembro mais.
Depois que desceu a placenta, tomei banho e fui para o quarto pós-parto. Eu
estava com uma fome de leão e pedi ao Ricardo que fosse comprar um lanche, com
direito a batatas fritas e refrigerante. Eu já estava degustando meu lanche
quando a enfermeira entrou com um copo de chá e umas bolachinhas de água e sal.
Só isso? Eu achei um desaforo com a mãe puerpéria, que havia passado mais de
doze horas sem se alimentar e gastando toda sua energia com as contrações. A
parte da alimentação deixou muito a desejar durante a estadia na maternidade.
Nas noites eu ficava toda hora pedindo para a enfermeira que me trouxesse um
copo de chá. Antes do Ricardo ir para casa pedi a ele que falasse para a
enfermeira me trazer o bebê, pois já fazia duas horas que o tinham levado.
Apenas por volta das duas da manhã trouxeram o Heitor para o quarto. A partir
de então, os dois dias que ficamos na maternidade foi como um curso que
tomamos, de cuidados para com o bebê. A única visita que recebi na maternidade
além do pai coruja, foi a da querida amiga Amanda, que fez questão de ir
fotografar nosso bebê tão desejado, no seu primeiro dia de vida.
Eu demorei quatro meses e meio para escrever esse
relato.
Adriana Fernanda Busso.
[1] Em março
de 2010, eu e Ricardo fomos ao Rio de Janeiro, assistir a dois dias de Paul
MacCartney. Um ano depois, Calico Skies havia se fixado em minha mente e antes
mesmo de saber da gravidez, mas já grávida, eu me emocionei muito lendo sua
tradução. Tornou-se a música tema da minha gravidez, escutei-a muitas vezes.